Fazia calor naquele dia 1 de maio e a comunidade estava em festa: a bica fora substituída por uma caixa d’água bem no alto do morro e quase toda casa tinha seu próprio encanamento, as exceções ficavam no lado do Beco da Virada onde os barracos eram feitos ainda de estuque e alguns madeira e as pessoas, a maioria de catadores de papelão e adjacentes, não tinham renda suficiente para pagar mensalidades dos impostos por menores que fossem, muito menos comprar material de alvenaria para construírem suas casas; o Sr. Engenheiro que fizera o projeto estava de terno, coisa rara para quem sempre o vira de jeans e camiseta pólo; o presidente da Associação era só sorrisos e o povo só alegria. O Primo, se encaixando como mestre de Cerimônias, perguntou com aquele ar de meio deboche e meio sorridente por não ter que ficar mais na fila esperando a vez de lavar as suas roupas do salão e nem ter que pagar pros meninos encherem seu barril: - Tá boa santa? Dependendo de como era feita esta pergunta a reação era sempre de indignação quando o Primo falava. Ele parecia aquele tipo saído d’O Cortiço : um sujeito magro, alto, fraco, cor de espargo cozido e com um cabelinho castanho, deslavado e com uma franjinha,(alguns anos depois começaram a chamar isso de Emo) que lhe caia, numa só linha, até ao pescocinho mole e fino. Era cabeleireiro e vivia sempre entre as mulheres, com quem já estava tão familiarizado que elas o tratavam como a uma pessoa do mesmo sexo; em presença dele falavam de coisas que não exporiam em presença de outro homem; faziam-no até confidente dos seus amores e das suas infidelidades, com uma franqueza que o não revoltava, nem comovia. Quando um casal brigava ou duas amigas se disputavam, era sempre o Primo quem tratava de reconciliá-los, exortando as mulheres à concórdia. Detestava o nome - Pelópidas_ herança do avô militar que lutara na 2ª Guerra Mundial e fora o único militar de patente na história da família. Todos só o tratavam e chamavam de Primo e era maneira mais fácil dos machos de plantão não se envolverem diretamente com ele. - Não e Sim!? A resposta da Nenenzona do Piteco foi imediata. Ato contínuo sacou a Bíblia da bolsa e disse, dirigindo-se ao microfone, com um ar resignado de quem já não tem mais esperança de nada: - Primo, hoje faz 4 anos que o Piteco se foi e ele sempre lutou para que a gente tivesse água, luz e uma morada digna, mas DEUS sabe o que faz, né? Me levou ele e ficou a felicidade de ver o sonho dele realizado hoje. Tô feliz por isso e triste por ele não estar aqui pra ver. - Que é isso amiga? Se alguém não se lembrar do Piteco hoje, eu vou rodar a baiana e falar muito porque ele foi o cara. Deixa comigo! - Tá bom, só não faz escândalo que eu não agüento! - Tchau ! No discurso do presidente da Associação o primeiro nome lembrado foi o do Piteco, sua luta pela valorização dos moradores, o orgulho quando a Bateria de Lata desfilava pelo morro fazendo algazarra e alegria da meninada, a preocupação com a educação das crianças, o desespero que ele ficava quando via um jovem perdido pro tráfico de drogas, motivo que levou sua vida. Tudo isso foi lembrado. Até quando se fazia fila pra estar na vez da bica e encher os barris em cada casa foi motivo pra muita gente verter umas lágrimas escapulidas. O Presidente não esqueceu as lutas daquele povo sofrido, trabalhador e sobretudo discriminado pela sociedade que servia, era declaradamente uma luta social desigual que começava a ser minimizada por aquela ação social. O Sr. Engenheiro lembrou das dificuldades do começo da obra quando “sumiam” alguns materiais e como teve que fazer várias reuniões na Associação para explicar que se o material sumisse a comunidade iria ficar pra trás das outras sem sua água encanada. A festa foi linda. Os fotógrafos do jornal comunitário( pensa que é só no asfalto que tem jornal é?) se espremiam para poder tirar uma foto do Governador que naquele ano eleitoral não iria perder uma oportunidade dessas. Depois dos festejos e quando todos foram pra casa, podia se ouvir aqui e acolá uns gritos de algumas mães: - Menino, pára de brincar com a água, ‘cê num sabe quanto demorou pra chegar até aqui em casa não!
Lembrança da Bica do Galo(para aqueles que conheceram)
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